Considerações sobre a lua

I

Não me lembro ao certo da primeira vez em que nos encontramos, mas me lembro exatamente do momento em que me dei conta da sua presença em gravidade. Força de atração mútua entre os corpos (celestes). Eu sempre mar, as ondas tentando chegar sem saber bem aonde. O não entender sinuoso das águas, substância farta, vaga, o acreditar-se fluida, imprevista, as certezas levadas no recuo da maré. “Existem alguns lugares do mundo em que a influência das fases da lua sobre as águas do mar é maior”. Descobrir-se oceano ao encarar a lua nova é ebulição. Deixar-se levar é alvoroço. Eu vaguei.

II

Quando sorri, são estrelas. A transbordar da boca, a borbulhar dos olhos. Os olhos, um céu em florescência, expansão dos infinitos que eu pressenti em devaneios, que eu ansiei na ficção que eu não soube escrever, mas planejei longamente. Ser envolto em estrelas é deixar-se luzindo no meio da noite, um querer fechar os olhos para resistir ao brilho, um ansiar por abrir os olhos e ser guiado. Desde que me conheço por gente, navego por estrelas, me oriento por constelações. As linhas imaginárias traçando paralelos entre o olhar e o céu da boca, um caminho de estrelas para percorrer. Estava desorientada, consenti a direção.

III

Nas fases em que muitos se perderiam, sou professa. É estranho pressentir-se na inconstância, volúvel movimento que desenhei muito antes do que escrevi. É um alívio antever vestígios. Da superfície, deduzir relevos, pressagiar rotas. Apontar, seguir viagem. Soa menos estranho persistir, considerar o relevo lunar, caminho que eu refaço de olhos fechados, cartografia natural. A superfície do abraço, o fechar-se em laços tão envoltos, deixou de lado o devir de satélite. Nas ondas que retornam, fez-se primário, lua cheia de sol a iluminar minhas jamais tardias sombras.

Dessa vez, não amanheci.

O nome das coisas

[Rascunhos do Caderno Terceiro]

A rua estava lavada, mas eu não vi um pingo de água cair. Eu não ouvi a chuva, eu não me dei conta dela, mas de alguma forma havia sentido no asfalto esfumaçado, nos carros embaçados e nas poças pegajosas de que eu nem tentava desviar. Eu fui levada de mim, me deixei ir embora, e a chuva era metáfora patética para me lembrar que eu precisava deixar que as coisas fossem também lavadas.

***

É difícil descobrir-se estrangeira. O olhar do outro pelo filtro do idioma desconhecido, do território não compartilhado.
O mapa difuso, o não estar em fronteiras amigas.
Eu desconheço o idioma que me partilharia, os olhos cansados de não alcançar o que se diz apenas com o sentimento de conter-se em limites geográficos.

Eu não me contenho. E eu não sou mais capaz de me expressar com desenvoltura na língua na  qual  alguém inventou que sou fluente.

***

De tanto analisar o relevo lírico das palavras, fui  proclamada geomorfologista das frases, cartógrafa da poesia.
Tão labirínticos os mapas, porém, que não há viajante disposto a guiar-se.

***

Eu acumulo palavras porque há (res)sentidos demais para nomear.

***

Estou escrevendo uma carta e gostaria que fosse endereçada a você.

Sete investigações sobre a vontade

I

Parecia agosto novamente. O vento, o frio na barriga, o não precisar entender. Parecia agosto, mas não havia tudo pela frente e a expectativa cessara. Qual era o tamanho da vontade, me perguntava, se ela não fora suficiente para mover o que parecia pronto para partir. Havia impulso, solo fértil, mas não havia água em profusão. Água com sal, notara, não fazia brotar nada senão saudade.

II

Estava chovendo. Eu ouço o barulho, um pingo insistente no canto da janela. No compasso da chuva, me perco a imaginar as gotas, pesadas gotas, escorrendo pelo lábio bem desenhado, pelo braço lânguido, pelos longos cabelos de uma cor que eu chamaria de qualquer coisa não cor, um tom em vestígio – deduzo que despercebo às vezes -. “Você é obsessiva”. Eu leio e todos os esses dançam nos meus olhos, escorrem com a chuva, curvas são perigosas no chão molhado. “(Um tapa)”. Eu sei, mas as gotas poderiam escorrer, talvez escorressem no dia, minha mão escorregou nas curvas. “Engole o choro e segue a vida. Não desapegue”. Eu desapego em ondas, não precisa dizer. Um olhar sob os óculos e a chuva. A imaginação é solo profícuo, a chuva alimenta. “Ambiguidade é especialidade nossa”. Ainda bem que eu me apego às palavras – e elas se apegam a minha vontade de dizer mais-.

III

Tem dias em que a gente se pega tropeçando nas mentiras, nos estilhaços dos olhos de vidro quebrado. O sangue aguado, que vira lágrima e já não tem vermelho para tingir o rosto, escorre, tropeçando nos vincos da pele que viveu demais, noites em claro demais. Foram as horas em que me deixei acordada esperando, sem saber o que viria. A vontade da vigília é um não querer . No sono, eu não me escondo, eu destroco os dizeres abafados, eu deixo de lado. Ao lado, investigo um dormir que não reconheço possível. O peso da calma me aflige. Num impulso, quero violar esse sono, não gosto de águas calmas. Minha fúria não combina com pouco vento. Quando nasci, foi vendaval.

IV

Enquanto eu observo o cata-vento, me pergunto o que seria dele se o vento cessasse. A ventania o justifica, mas também o estraçalha. No turbilhão, não vejo suas cores, as voltas espaçadas com perfeição, a feição de flor. Tudo se torna coisa só, vertigem. Não há mentira no vento, que se apaixona pela facilidade de movê-lo na direção em que quiser, mas há ressentimento por não poder deixá-lo para a brisa que apenas refresca, sem macular. Por me darem os braços não dados ao furacão, retiro o cata-vento e penso se há salvação pelo mal que tantas voltas causaram. Sinto muito que não. Sinto vontade de nunca ter sido tempestade.

V

Não havia mentira, disso se assegurara desde o início. Apesar de todo o esforço contrário, era preciso um canto de calma. No vão do abraço, havia a segurança que sempre lhe escapou – a vida sobre pontes, um eterno hesitar -. Os olhos de doçura, os braços de enrosco, três vezes o assobio no portão, o esforço com as palavras, a prontidão, a convicção, até mesmo o temporal. Só que tudo que é seguro demais é também custódia. Não quer dizer que eu não ressinta, mas ressentir, no dicionário, tem mais acepções negativas que positivas. Meu barco ressente-se também do mar.

VI

Perdi as chaves. Eram tantas as portas dali, e eu perdi a capacidade de abri-las. Ficar sempre do lado de fora, esperando que alguém lhe destrave a passagem, é angustiante. Foi metafórico perder as chaves por meses, sou patética em metáforas dias afora. A verdade, notei, é que deixei as chaves guardadas debaixo do travesseiro, na esperança de escapar pela janela. Depois que as encontrei num bolso qualquer, notei que até a vontade de escapar não existia mais. Quando é que Cecília vai me deixar, eu penso, e já recito em silêncio a adversidade da lua, que eu nunca perco.

VII

Sentir é a rainha de todas as vontades. Os impulsos, escudeiros, navegam o sistema nervoso e saltam pelas extremidades. A língua não articula a palavra à toa, porque é mensageira de soberana afoita. E tem olhos para ler os sulcos da pele, os poros ouriçados. O ar pesa em deleite porque vontade em demasia é substância volátil. E o olfato, ansioso espectador, arquiteta meticulosamente o caminho até a pele. Suspiro é inspiração à realeza. Sentir é rainha, porque perpetua-se em despotismo fecundo. E fecunda.

No dia em que você se esquecer de mim

Será uma manhã de luz branca, talvez uma tarde sem vento, e você vai notar que não se lembra de mais nada.

A sensação de angústia que costumava tomar a garganta e se transformar em lágrimas quando ninguém mais estava vendo vai desaparecer de um todo e será substituída pela vaga sensação de ter deixado algo de fora da mala. Quando a noite chegar, você vai voltar os olhos para o céu, notar as cinco estrelas em formato de cruz e pensar em como deve ter sido bonito navegar em águas calmas guiado por elas. Vai desejar o mar, apesar de não lembrar necessariamente como superou o medo de que a água o levasse, de que o mar não o deixasse voltar.

“E se não voltasse – vai cogitar – não há nada que me faça olhar para trás”. E vai olhar para trás e querer que fosse diferente, que houvesse alguém para não esquecer. Serão sete segundos de fadiga, e o som ao longe do ronco de um motor vai desviar seus pensamentos para as sólidas memórias de uma peça qualquer fora do lugar.

Ao chegar em casa, o primeiro gole de uma cerveja qualquer vai soar redundante. Como devem ser infelizes os que bebem para esquecer, os que bebem para ter coragem, os que não controlam o monstro debaixo da cama. E a música que escapa pela janela mais próxima vai fazer os olhos se voltarem para a imensidão da parede quase líquida, profundamente escura, como as memórias de nada se atropelando atrás dos olhos. “Já ouvi essa música em algum lugar…”. A chuva vai se juntar à melodia e calar os pensamentos. Uma espécie de paz, um silêncio na alma que você só sentiu uma outra vez, da qual você já nem se lembra mais, vai lhe invadir. Paz não combina com invasão, mas você esquecerá o arrebatamento assim que alguém bater a porta na casa ao lado.

No dia em que você se esquecer de mim, eu vou me lembrar do abraço sem bolsa, do quase beijo na porta, do frio na barriga no caminho de volta, das mãos dadas no ônibus, da declamação do poema, das tardes de chuva, do olhar de desprezo, do telefone tocando, da janela estreita, do frio da madrugada, das músicas decoradas, do miojo com água, da pele do frango, dos cálculos, de como fazer carinho, da projeção da casa, do encontro às avessas, de como é sempre você que se lembra de tudo.

E vai ser apenas um dia normal, o dia em que você se esquecer de mim.

Já eu não esqueço. Eu escrevo.

Fonética dos beijos

*** Pela manhã

Hoje eu liberei meus dedos para fazerem o caminho proibido da saudade. Ele sempre começa com um som no ouvido, saído da memória do telefone tocando na tarde abafada. O telefone tocando infinitamente mais devagar que meu coração galopante. São duas letras o desatino da vida adulta. Só duas letras, num som que eu não sei imitar, mas que ressoa em ondas nos meus ouvidos ressentidos demais, surdos demais. Como é que eu ouvia o balbuciar das palavras mais baixas? Talvez leitura labial, talvez as palavras saíssem de mim antes de passar pelas suas cordas vocais.

Você sabia que “balbuciar” é sinônimo de “gaguejar”, mas que eu gosto mais do som do bê com o bê, da língua querendo roçar os dentes para pronunciar o cê? E que eu gosto de escrever palavras dentro dos beijos, numa fonética figurada na gramática da tua boca? Eu já imagino o olhar meio perdido – porque prefere se perder a demonstrar fraqueza (que me lembra de “franqueza”, que me lembra de você, mas só às vezes).

*** Na sombra

Eu estava sóbria, aliás, até ouvir dois acordes. Funciona também quando passa uma pessoa com aquele mesmo cheiro que eu acho que não é perfume, deve ser desodorante, mas eu tive vergonha de perguntar o que era. É disso para a textura. Alguém já te falou sobre isso? A textura da boca, que eu apenas presumia, antes de descobrir de fato que era onde eu gostaria de morar, de preferência com o sal das ondas que iam e vinham no meu estômago. Que âmago sensível o meu, que só da lembrança, só do nada das conexões neurais se pega em fúria, em rubor, em vontade de não voltar mais da memória.

Você sabe que eu chorei. Eu choro às vezes, por todos os motivos mais banais que você pode presumir, mas nessa noite de saudade eu sorri. Eu sorrio às vezes lembrando e vou ficar tímida de ter escrito isso. Sabe que ninguém acredita quando eu digo que sou tímida? Você saberia dizer a eles, porque me viu enrubescer, avermelhar, corar. Ainda não decidi que palavra prefiro, mas acho que gostaríamos mais da última.

Eu volto à textura aos poucos, porque é a lembrança menos distante. E me vem muito texto, porque esses radicais me barbarizam o tempo todo. Eu preciso mesmo de um texto para desopilar, para desoprimir os ombros. Só agora notei que Drummond adiantou o diagnóstico que viria anos depois: todas essas palavras que eu deixei de escrever na tua boca me causaram uma enxaqueca cervicogênica.

*** Depois da meia-noite

Hoje eu bebi e liberei meus dedos para fazerem o caminho sem volta da saudade.

É proibido sentir saudade II

IV

Choveu no dia do enterro. Sempre chove, disseram alguns. Observando as gotas que começavam a cair, penso que chove apenas quando alguém partiu sem que houvesse despedida. As nuvens se desfazem sobre as cabeças que não disseram adeus, que não encostaram um rosto no outro, um abraço no outro, pensando que aquela seria a última vez. A chuva cai para fazer companhia às lágrimas, para fazer as vezes do adeus nunca predito.

Chovia nos meus olhos, que poucos motivos tinham para chorar. O desespero paspalho, que não havia chegado a alguns olhares que antes tentavam fugir, desabou-se de todo. As palavras se atropelavam para sair de forma desajeita e se jogar sobre as lascas de terra úmida. A terra era úmida de lágrimas ou de chuva? Enterrar um coração na terra úmida, pensei, é como plantar a semente da saudade, que deveria ficar trancada na caixa de madeira em que tentam trancafiar a solidão da morte.

Só que ela se espalha.

V

O dia em que eu a conheci eu não conhecia a mim mesma. Não me lembro dos longos cabelos de um grisalho escuro, do coque baixo ou do ovo passado religiosamente nos fios espessos. Não me recordo da sombra no olhar que veio de longe, das mãos cansadas, do guarda-chuva usado em dias de sol. Não me lembro dos vestidos comprados em uma só loja, do caminhar até a cerca, do preferir ficar sozinha na casa de madeira. Não sei do gosto da comida feita para mim, do permanecer ao lado do berço, da preocupação com a gata que insistia em se aninhar ao lado dos meus poucos centímetros de vida.

Não há recordação da última visita ou de quando ela determinou meu jeito de ser num punhado de palavras para as quais eu inventei uma voz. Eu não sei do toque da pele, da vastidão do abraço, do sulco dos olhos. Eu não consigo partilhar a falta que ela faz no coração que pulsa também em mim, porque os cérebros pequeninos amontoam muitas quinquilharias sobre as lembranças pueris.

Eu apenas sei da criança dos olhos límpidos que vai acumular a saudade dos outros na própria infância e ressentir-se por não se lembrar daquele amor que a acalentou antes que ela mesma pudesse saber o que era amar. Há que se preencher de outras saudades o vazio que a não lembrança causa para que o vulto não vire buraco negro e sugue as alegrias que ali têm o direito de se instalar. É proibido sentir saudade se a você não foi dado o direito de encher a alma de pequenas lembranças.

A saudade dos outros é espaçosa, pegajosa, e vai, em algum momento, tentar te sufocar.

*

Para os excertos I, II e III, clique aqui.

Manual de etiqueta da mulher feia

A mulher feia acorda todos os dias e não cabe nas roupas, não cabe no espelho, não cabe no espaço minúsculo que deixaram para ela na fila da satisfação.

O sorriso da mulher feia não cabe na boca, na fotografia, no rosto distorcido de lágrimas. Não é permitido sorrir, dizem à mulher feia, que engole a gargalhada, envergonhada, e depois de um tempo não se lembra mais de como é ter motivos para gargalhar.

A mulher feia sobra. Dos lados, na festa, na escolha, na lembrança de quem não sabe o nome dela. “Aquela feia”, aponta, sem nenhum dedo, para a fotografia repleta de gente linda que tem nome, mas não tem parcela de culpa.

A saída da mulher feia é encher. O boletim de nota, o corpo de roupa, o peito de angústia, a mente de nãos. Não pode usar saia não pode usar decote não pode usar shorts ou roupa colada não pode a perna de fora o braço de fora a vergonha de fora não pode vestir branco bolinhas listras aberturas tubinhos roupa larga e tremelique. A mulher feia não pode ter tique batom vermelho estampa grande não pode sair sem maquiagem sem carona certa sem salto alto sem saber exatamente o que dizer para fazer alguém rir.

Não pode deixar à mostra as feiuras, escancarar a barriga grande ou a perna fina. Não deve ofender o olhar, a mulher feia, com mais que o argumento fundamental de sua fealdade. Já que está, que não se dê. Não use chapéu, cor demais, tinta demais no cabelo. Não ouse usar o que é de mulher que não é feia. Não use ousar no geral.

A mulher feia não pode beber, não pode chorar, não deve reclamar. Não pode falar alto, não deve gostar em demasia de chocolate, não pode ter preguiça, dormir até tarde, ouvir música no máximo. Não deve deixar de pedalar, de abrir portas, de desentupir pia, de saber o significado de parcimônia, a Equação de Torricelli, os 12 trabalhos de Hércules e de ler Affonso Romano de Sant’Anna e Proust no original.

Não pode, jamais, a mulher feia dizer que é feia. A ela, resta ocupar o espaço de não estar apta, de não ser acolhida, de não ser amenizada. A mulher feia pode ser amiga, mas não deve ser avistada.
Acima de tudo, a mulher feia deve estar para não incomodar e não deve se ressentir.

Ressentimento só cabe em lábios bem traçados e corações delicados, o que também não cabe na mulher feia.

O que deixei de falar

Você me perguntou se eu não me contentava com palavras. E eu não consegui responder, porque fui colocada em um tribunal fajuto, diante de uma testemunha muda e opressora, porque minhas lágrimas, tolas e envergonhadas, se atrapalharam ao escorrer, transgrediram os vales do meu rosto e impediram qualquer sentido de sair dos meus lábios desnorteados.

Não que eu não esperasse pela voz alterada, pelo tom quase ríspido. Não que eu não lhe desse razão. Não é que eu não compreendesse as hipérboles, os pleonasmos, as frases que pareciam sair prontas de pensamentos arquitetados em outros tempos.

Não que eu não tivesse justificativas cabíveis, rubricáveis e legítimas. Não que a cada colocação eu não cogitasse uma resposta justa para ser estilhaçada em seus olhos vermelhos – eu não sabia se prestes a chorar ou apenas rubros diante do momento áureo da explosão –.

Não é que eu não quisesse ouvir aquilo ou que não fosse capaz de suportar verdades empurradas goela abaixo do meu orgulho.

É que eu não saberia conviver com o encerramento daquela conversa – monólogo com participações não especiais –. É que minhas palavras saíam aos coices, desesperadas por selecionar o que precisavam calar, por tentar impedir que a ironia respondesse por elas. Porque quando sou colocada em tribunais cujo desfecho é outro que não a absolvição é a ironia que quer me salvar, salvar meu orgulho, minha chance de maquiar as aparências que derretem em rios de água salgada.

O caso é que eu lutava contra um insidioso desejo de espalhar minhas lágrimas em você, de deitar a cabeça em seu peito e dizer que, sim, eu já sabia daquilo tudo, eu conhecia todas as suas vozes, eu previa cada uma de suas angústias. Eu queria gritar que o culpado era o seu medo, a minha corda bamba e a repulsa que sentimos da felicidade.

Queria esmurrar partes milimetricamente incalculadas do seu corpo e beijar seus olhos e segurar seu abraço por um minuto a mais. Minha fragilidade esparramada queria caber em suas mãos fechadas, na textura caprichosa de seus lábios ressentidos.

Eu estava sendo acusada e não podia pedir outra coisa que não sua voz em sobressalto dizendo que me amava, que pararia o mundo por mim, que queria tudo como era antes. Eu não queria perder seu descontrole, o tremor rancoroso em sua voz, a gagueira infantil plenamente superada para expelir a raiva que você sentia por eu ser como sou.

No desvario daquela cena absurda, eu queria dizer aos soluços que te amava, e amava mais ainda o desconcerto dos seus olhos que não conseguiam me focar, a forma como eu enxergava em você o menino daqueles dias e o quanto eu estava orgulhosa de ouvir com clareza o que seu peito vociferava desde que o mundo era outro.

Eu queria sussurrar, já sem forças, que eu precisava mesmo de você para arrumar minha desordem, que meu desassossego só repousava em seu olhar e que só há dia para minha poesia, nessa e em outra vida, quando há você para instigá-la.

É claro que me satisfaço com suas palavras, mas também tenho uma vontade imensa dos seus silêncios.

Frio

Ele chega, mesmo quando eu penso estar protegida, mesmo quando já ensaiei meus costumes para a parte crucial da festa. Quanto mais madrugada, mais perigoso fica. Eu deveria virar abóbora à meia-noite, como prega o conto de fadas, mas não tenho vocação para princesa e insisto em rondar o horário dramático, o momento difuso em que o não pertencer fica pesado demais, indissipável demais.

Ele chega e se faz senhor. Tudo se torna glacial. De uma languidez perturbadora. Um tremor percorre o corpo de dentro para fora. Da alma aos poros em riste. Some primeiro o foco do olhar, é impossível captar com os olhos o que quer que seja vida. O pulsar, desconfio, some também, já que desaparece o calor, as extremidades amortecidas na apatia da palpitação, os órgãos impotentes cogitam hibernar.

Somem as palavras; cessa o desejo; aparece, mesquinha, a veleidade.

Ele chega, eu sempre espero. Não importa se naquele dia não o desejei. Se naquele dia resisti ao fingir. Se há dias ele não era alimentado por palavras. Basta vestir roupa de festa, traje de felicidade, sorriso de porta-retratos. Ele sente cheiro de perfume fora da caixa.

“Cadê o sorriso?”, pergunta o retratista enfadonho. Se alguém pudesse ouvir meus olhos, saberia que não há resposta a essa dúvida, e que não é mais familiar ao tempo o rosto do primeiro a perguntar. O problema maior é que o frio tem ouvidos de ar, e já sabe que qualquer deslize é o bastante para saber que é chegada a hora.

Ele chega. E sabe que eu não consigo dormir com os pés gelados.

Culpada

É preciso não beber nada. Ficar sóbria o quanto for possível. Por hoje, apenas – talvez – não ceder.

Acordar com a alma pesada é assim. Ficar pelos cantos ensimesmando os cantares, andar na linha para não desalinhavar os contados. É um traço difícil, frágil costura a que me liga à sanidade que eu insisto em construir.

Se há construção, entretanto, há desabamentos. É uma consequência, ainda que não se determine tempo. Nem preciso pensar a fundo para saber que a estrutura é mais delicada quanto piores forem os materiais que a formam. Não preciso dizer também que espero um ruir a qualquer momento.

***

Sou culpada. Não me lembro de ter negado. Nas vezes em que minhas palavras resvalaram na direção de me defender, você logo fez questão de se mostrar imune às minhas tentativas. Calei antes de qualquer deslize.

É pena você também não calar. Às vezes penso que as coisas que você diz fui eu que escrevi durante um sonho poético e premonitório e depois esqueci só para achar mais lindo quando alguém me dissesse. Há, pois, o perigo da beleza. A crueldade do que é belo é catastrófica.

É minha culpa, já disse? Pena que lançar minhas faltas em palavras não me faz menos culpada. Elas têm raízes profundas, e são cultivadas com água salgada. Em abundância.

***

É preciso ficar sóbria. Já me basta estar engasgada de palavras.