É proibido sentir saudade II

IV

Choveu no dia do enterro. Sempre chove, disseram alguns. Observando as gotas que começavam a cair, penso que chove apenas quando alguém partiu sem que houvesse despedida. As nuvens se desfazem sobre as cabeças que não disseram adeus, que não encostaram um rosto no outro, um abraço no outro, pensando que aquela seria a última vez. A chuva cai para fazer companhia às lágrimas, para fazer as vezes do adeus nunca predito.

Chovia nos meus olhos, que poucos motivos tinham para chorar. O desespero paspalho, que não havia chegado a alguns olhares que antes tentavam fugir, desabou-se de todo. As palavras se atropelavam para sair de forma desajeita e se jogar sobre as lascas de terra úmida. A terra era úmida de lágrimas ou de chuva? Enterrar um coração na terra úmida, pensei, é como plantar a semente da saudade, que deveria ficar trancada na caixa de madeira em que tentam trancafiar a solidão da morte.

Só que ela se espalha.

V

O dia em que eu a conheci eu não conhecia a mim mesma. Não me lembro dos longos cabelos de um grisalho escuro, do coque baixo ou do ovo passado religiosamente nos fios espessos. Não me recordo da sombra no olhar que veio de longe, das mãos cansadas, do guarda-chuva usado em dias de sol. Não me lembro dos vestidos comprados em uma só loja, do caminhar até a cerca, do preferir ficar sozinha na casa de madeira. Não sei do gosto da comida feita para mim, do permanecer ao lado do berço, da preocupação com a gata que insistia em se aninhar ao lado dos meus poucos centímetros de vida.

Não há recordação da última visita ou de quando ela determinou meu jeito de ser num punhado de palavras para as quais eu inventei uma voz. Eu não sei do toque da pele, da vastidão do abraço, do sulco dos olhos. Eu não consigo partilhar a falta que ela faz no coração que pulsa também em mim, porque os cérebros pequeninos amontoam muitas quinquilharias sobre as lembranças pueris.

Eu apenas sei da criança dos olhos límpidos que vai acumular a saudade dos outros na própria infância e ressentir-se por não se lembrar daquele amor que a acalentou antes que ela mesma pudesse saber o que era amar. Há que se preencher de outras saudades o vazio que a não lembrança causa para que o vulto não vire buraco negro e sugue as alegrias que ali têm o direito de se instalar. É proibido sentir saudade se a você não foi dado o direito de encher a alma de pequenas lembranças.

A saudade dos outros é espaçosa, pegajosa, e vai, em algum momento, tentar te sufocar.

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