Desafinada

Na confusão mental do cérebro submerso, eu tento me agarrar às últimas forças remanescentes do cuidado diário para não trazer à tona o que é preciso esconder. As amarras que me mantêm perigosamente caindo da linha, mas resistem para que fiquem presos os monstros todos que preciso dominar.

Só que, desde aquele ímpeto, da fuga, dos tremores internos – ou talvez muito antes, mas há um marco sempre a ser escolhido -, as amarras afrouxaram de forma irremediável. Passo as horas de sobriedade tentando recuperá-las; vivo com pavor cada segundo de inebriação tentando juntá-las, aos frangalhos, para que não me abandonem por completo.

Quantas vidas cabem em uma vida? Eu olho profundamente em seus olhos buscando a resposta, mas só encontro mais do que há em mim. E quanto mais procuro argumentos, mais caminhos me levam a escancarar o que é necessário dissimular. 

É verdade, porque eu minto muito pouco pra você.

Quanto a você, é melhor que continue mentindo o tanto necessário para não me decepcionar jamais.

Spoiler

Um livro sem numeração de páginas me acelera as neuroses porque, quando espio a última página, ele não me diz quanto falta para terminar.

Eu não quero saber como acaba nossa história, mas espiei a última página e vi você e eu agarrados numa vírgula, com medo de chegar ao ponto final*.

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*No Volp (Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa), referência oficial da grafia das palavras, “ponto-final” é escrito com hífen. Entretanto, no Houaiss e na Moderna Gramática da Língua Portuguesa, do mestre Bechara, a palavra vem sem o hífen. Como Bechara é rei e eu, plebeia, optei por segui-lo.

Solipsismo

Acabou o encanto da companhia quando se deparou com os portões da incompreensão, da não simultaneidade, da falta de espelho e do desencanto.

Desencantada naturalmente, artificialmente arranjada para o belo fingir. Fingir correspondência, falsear o conforto. Profissionalizar-se em criar a reciprocidade em laboratório, forjar a luz em quartos escuros. Um paradoxo com o qual tinha que lidar todos os dias, a cabeça no travesseiro, os terrores noturnos.

Um eu lírico afastado da poesia, caminhando em passos pegajosos na falta de ansiedade da prosa, é mudo. Quando se esgueira por muito tempo nas ruas iluminadas demais do cotidiano, é morto.

Aqui jaz um sujeito poético que perdeu a poesia e virou só sujeito, um dócil escravo dos matadores de poemas.

É proibido sentir saudade

I

Pensava se não seria melhor a surpresa, que tudo tivesse acabado sem o aviso dos médicos, sem a reação nauseante dos remédios, sem a troca de olhares que é sempre a última. O último almoço, a última risada, o abraço final. O que mais angustia não é quando o fim chega: é quando ele persegue.

Perseguição finda, ela conheceu a propagação da angústia. Porque angústia é visgo, pleural e expansivo. A inquietação paradoxal daquilo que cala. E se espalha melhor justamente no silêncio do ausente, propagando-se em todo espaço que se ocuparia dele, até que passa a outros vãos, mesmo que não ocupados daquela ausência, e se instala, inquilino maldito de eterna presença.

[Esqueceram-se apenas de deixar clara a incapacidade de todos nós de lidar com a falta de interstícios. Expansivos que somos, largamos como garras os ramos de nossas projeções, queremos todos os espaços, somos projetados para completar lacunas. Na falta delas, não há espaço também para permanecer. É permitido apenas o pesar com contagem regressiva, sob a pena do abandono mesmo dos viventes.

O enlutado que lute contra a angústia do que falta para não perder aqueles que ainda não se foram.]

Ela acabaria aprendendo a física da saudade mais tarde – e tarde demais -, quando já não havia lacunas; quando os espaçosos já haviam saneado as vidas rasas antes enlameadas pelo pesar alheio.

II

Alguns sabiam e até já enxugaram lágrimas que ela havia chorado por causa dele. Uma sombra nuns olhos novos, pouco profundos na escuridão que os preenchiam. A escuridão, em si, é mais longa do que se pode imaginar, mas ninguém era atrevido o suficiente para ficar por dois segundos a mais nela por medo de se perder.

Estão certos.

Outros ignoravam o motivo do drama, nem sempre por opção. Havia impedimentos diversos para que ela carregasse a bandeira do que faltava. Todos os argumentos eram contrários à persistência do ausente. Obsessão, diriam com olhos recriminatórios. O que não estava ali, entretanto, não era exatamente uma falta. Era mais um peso, e ocupava um território para sempre alienado dela. O que faltava era o maior impedimento para que o lugar fosse retomado. A saudade havia se instaurado ali, parasitando memórias e medos, calando qualquer possibilidade de socorro, e sendo calada.

Quando não se pode chorar a saudade que se instala, ela amordaça e cala mais do que a falta. A saudade provinda da obsessão, na verdade, nunca deve ser dita em voz alta; é proibido sentir saudade do que os ingênuos insistem em coibir. O que eles ignoram – e ela decorou cedo – é que a saudade obsessiva alimenta-se de si mesma, e se reproduz na marra toda vez que é calada.

[A saudade é coisa pequena que mata gente grande, leu por aí.]

III

A terceira história foi censurada pelo princípio fundamental da física da saudade: é proibido, sobretudo, sentir saudade do que não se teve.