Fratura exposta

No último ano, eu quebrei o pé. Ao menos, essa era a sensação. Doeu como se quebrasse. Engessei como se houvesse quebrado. Me envergonhei como tal. De um jeito estúpido, patético, uma representação meticulosa de todas as minhas tentativas de permanecer inteira.

No raio X, nenhuma fratura. A explicação médica pairava cubista no ar. As estruturas, uma fragilidade, não se mostram. Não engessa, não precisa de nada, espera parar de doer. O pé, sustento, demora a sarar. Naquele momento, o desequilíbrio da base, nada metafórico, prenunciava o ruir do topo.

Quem quebrou fui eu.

Sintomático

Hoje mencionei o conceito de ekphrasis com a propriedade insana dos nebulosos e senti muita saudade de quem eu era quando escrevia, de quem eu encontrava nas palavras que se atropelavam para inundar o papel sem temperança.

Hoje eu senti saudade de quem eu queria ser no espelho convexo do meu balbuciar e chorei sem lágrimas, porque a fonte em mim raleia e só sobrou palavra feia e de rima pobre para me acompanhar.

O corpo fala

Quando disseram que o “corpo fala”, eu pensei que fosse outra coisa.

Até procurar “torcicolo” no dicionário:

Torcicolo
Derivação: sentido figurado.
ambiguidade de palavras
Ex.: quem quer ser bem compreendido deve evitar torcicolos

Estou tentando evitar torcicolos desde que me conheço por gente, mas, até quando não falo, meu corpo quer transbordar palavras.

A hora da saudade

A seca no Lago de Itaipu levantou as saias do passado e deixou à mostra a vida invadida pelo progresso.

Vila reaparece com seca no Lago de Itaipu

Os tijolos à mostra sussurravam um segredo nada encoberto: é na hora da penúria que a saudade se apresenta, visível em meio à ruína.

[A saudade, quando chega, é um grande sinal de que já está tudo destruído.]

Plataforma Lattes ou o Orkut acadêmico

É incrível como repetimos padrões comportamentais não importa a rede social. Ainda que cada uma guarde bem um perfil, de acordo com a necessidade a que se presta, ainda somos nós por trás dos teclados – na frente dos espelhos, reunindo pedrinhas, de preferência as mais brilhosas, para mostrar aos amigos, e, com alguma sorte, aos inimigos -.

Essa reflexão nada abstrata e pouco aprofundada me veio à mente porque, juro, tenho pretensões de finalmente deslanchar o tal do currículo na Plataforma Lattes. Desde que saí da universidade – e que penso em voltar para lá – encontro os devidos subterfúgios para não enfrentar a tarefa massacrante que é reunir os cacos da graduação, limpá-los com alguma dignidade e superar o sentimento que, suponho, seja vergonha de levá-los a algum lugar para me representar.

Uma rápida navegada por currículos de conhecidos já transforma toda minha força de vontade em constrangimento e em negação da vida acadêmica. Não é de hoje, aliás, que a plataforma é chamada carinhosamente por mim e por meus amigos de “Orkut da Academia”. Para mim, a melhor história é a de uma professora mestre repleta de rigor metodológico que colocou o certificado do show do MacFeck, grupo europeu de folk que em sua trajetória meio hippie passou por Cascavel duas vezes. Absolutamente tudo a favor do MacFeck; apenas tudo contra a falta de limites do ridículo.

Macfeck
“Exigimos a retirada do nosso nome do currículo por motivos de: MINHA SENHORA, tenha vergonha nessa cara!”

Já conformada de que terei que atualizar meu perfil no Orkut (risos chorosos), vasculhei alguns certificados e encontrei o único que me parece suficientemente adequado para representar meu perfil. O fato de ele ter sido conseguido na terceira série do primário é irrelevante, já que eu certamente contrataria ou orientaria o trabalho de alguém que ficou em primeiro lugar no pique-bandeira. O HowStuffWorks me ajuda a explicar:

Esta é uma brincadeira que trabalha a noção de estratégia e trabalho em equipe: divididas em times, as crianças têm de atravessar o território inimigo e pegar a bandeira do adversário sem deixar que a sua seja roubada. Se um jogador for “pego”, seus colegas se organizam para resgatá-lo sem deixar o objetivo principal de lado.

pique-bandeira
Prêmios e títulos: primeiro lugar no pique-bandeira.

Por que você não escreve um livro?

Que o espaço de comentários é o chorume apodrecido do lixo velho da internet, ninguém ousa discordar, mas de vez em quando é possível encontrar amor em meio aos detritos. Uma espécie de identificação vergonhosa, é certo, mas ainda uma forma de encontro.

Se há dúvidas para o amor, lembro logo que não é apenas a resposta, a pessoa teve o trabalho de escrevê-la. E quando alguém se dá ao trabalho de escrever alguma coisa meu nível de admiração – ou de desprezo – eleva-se de forma descontrolada.

Da série “Pessoas que eu gostaria de conhecer”.

– “This song is sooo me.”
– “Good for you, why don’t you write a book?”

Perturbações

A cabeça na nuvem. E um esforço sobre-humano para enfrentar o muro de palavras que se erguia a cada vez que os dedos tocavam o teclado com medo que o barulho das teclas acordassem o monstro da alma.

O monstro, quando acordado, diz o que não se deve jamais pronunciar. “Não é falado, está escrito”, ele retruca, irônico brincalhão das palavras. “Não diga como se fosse fado aquilo que está para se tornar fato”, replico. Ele fica em silêncio, como fingisse um encolhimento quando, bem sabemos os dois, é no silêncio que ele se expande, alimentado de tudo que se cala.

Havia muito o que dizer, mas escalar o muro exige mais que força. Pendurada em cada jogo de palavras, vou me esgueirando, tentando criar subterfúgios em duplos sentidos, anástrofes e anacronismos, tentando usar as palavras do avesso. Muitos tentam se explicar com elas; eu quero confundir.

Soubesse o monstro, não tentaria me fazer falar. Eu só digo a verdade quando não digo. Fatais mesmo à mentira são os olhos, porque eles não falam, escancaram a alma.

Ao dizer, eu só desdigo.

Desgaste

Setembro

Fazia muito calor naquele inverno. E eu lidando com a injustiça de ter minha estação preferida maculada por abafamentos diversos. Quantos dias de frio há no verão? E ainda que houvesse muito ar, porque há um vento turbulento enquanto eu não converso com você, permanecia o sufocamento. Tenho estado amplamente sufocada pelas palavras que não digo, pelo calor de agosto e agora de setembro, por não saber se, neste caso específico, tenho agradado mais que desagradado.

Agora vejo claramente que não me enganei quando li aquelas convicções de forma incerta. Continuo não sabendo o que você diz ou como eu deveria me portar. Sou uma desajustada.

***

Outubro

Enquanto eu parei e observei o céu branco encardido pela poeira que, agora eu tenho certeza, não vai baixar tão facilmente, pensei se terminaria dessa vez de escrever

Voltei e estava há mais de 25 minutos sem ao menos pontuar a frase para fingir que terminava o pensamento. Não seria dessa vez.

***

Novembro

Hoje foi um dia de quase frio. E a independência de meus terminais nervosos gritava dizendo que não era só o calor que cansava, que me calava. Era uma exaustão de dentro para fora que impedia o foco dos olhos, o respirar dos poros, a sobrevida de uma falsa calmaria.

“Está ansiosa?”

Respondi com um sorriso, calei a perna que transbordava a agonia.

Não é ansiedade, é desgaste.