No dia em que você se esquecer de mim

Será uma manhã de luz branca, talvez uma tarde sem vento, e você vai notar que não se lembra de mais nada.

A sensação de angústia que costumava tomar a garganta e se transformar em lágrimas quando ninguém mais estava vendo vai desaparecer de um todo e será substituída pela vaga sensação de ter deixado algo de fora da mala. Quando a noite chegar, você vai voltar os olhos para o céu, notar as cinco estrelas em formato de cruz e pensar em como deve ter sido bonito navegar em águas calmas guiado por elas. Vai desejar o mar, apesar de não lembrar necessariamente como superou o medo de que a água o levasse, de que o mar não o deixasse voltar.

“E se não voltasse – vai cogitar – não há nada que me faça olhar para trás”. E vai olhar para trás e querer que fosse diferente, que houvesse alguém para não esquecer. Serão sete segundos de fadiga, e o som ao longe do ronco de um motor vai desviar seus pensamentos para as sólidas memórias de uma peça qualquer fora do lugar.

Ao chegar em casa, o primeiro gole de uma cerveja qualquer vai soar redundante. Como devem ser infelizes os que bebem para esquecer, os que bebem para ter coragem, os que não controlam o monstro debaixo da cama. E a música que escapa pela janela mais próxima vai fazer os olhos se voltarem para a imensidão da parede quase líquida, profundamente escura, como as memórias de nada se atropelando atrás dos olhos. “Já ouvi essa música em algum lugar…”. A chuva vai se juntar à melodia e calar os pensamentos. Uma espécie de paz, um silêncio na alma que você só sentiu uma outra vez, da qual você já nem se lembra mais, vai lhe invadir. Paz não combina com invasão, mas você esquecerá o arrebatamento assim que alguém bater a porta na casa ao lado.

No dia em que você se esquecer de mim, eu vou me lembrar do abraço sem bolsa, do quase beijo na porta, do frio na barriga no caminho de volta, das mãos dadas no ônibus, da declamação do poema, das tardes de chuva, do olhar de desprezo, do telefone tocando, da janela estreita, do frio da madrugada, das músicas decoradas, do miojo com água, da pele do frango, dos cálculos, de como fazer carinho, da projeção da casa, do encontro às avessas, de como é sempre você que se lembra de tudo.

E vai ser apenas um dia normal, o dia em que você se esquecer de mim.

Já eu não esqueço. Eu escrevo.