Leminskiando – parte 3

“Não sei quem disse, não lembro agora, que o lugar dos poetas são as agências de publicidade e as salas de jornalismo”. Essa é uma das falas de Marco Vasques, que cometeu alguns livros, é crítico literário e gestor de políticas públicas. Vasques falou ao ALT também durante o Londrix. Na entrevista, evoca o Leminski catalisador de leituras, fundador e influenciador de linguagem. Principalmente, o Leminski poeta integral, portanto, eterno.

A importância da forma que ultrapassa as barreiras do fazer poesia e passa a ser marca no ser poeta.

Entrevista publicada em 18 de outubro de 2009, na edição 87 do Gazeta ALT.

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Gazeta ALT

Diagramação e arte: Jeferson Richetti
Edição: Anderson Antikieivcz Costa

Na balbúrdia do silêncio

Julliane Brita

Poetas geralmente não levantam cedo, principalmente os não burocratas. Marco Vasques, que, como disse, cometeu alguns livros, madrugou às onze da manhã para falar sobre outro poeta, o mitológico Paulo Leminski. A causa é muito boa. Alma afim e um dos pais literários de Vasques, Leminski é presença constante na vida do escritor, crítico literário e gestor de políticas públicas.

Rio-grandense por nascimento, tornou-se catarinense por circunstâncias da vida e leminskiano por uma coincidência e uma afinidade instantânea. No silêncio do lirismo que une almas-irmãs, a morte não foi suficiente para separar o que estava unido por algo maior e muito mais perene que a carne, esta que padece nos extremos da vida. O poema Leminski não morreu há 20 anos, ainda enfeitiça muitos.

ALT – Quem foi Paulo Leminski para você?

Marco Vasques – Paulo Leminski para mim não foi, ele é. É uma figura muito presente na minha vida porque minha primeira experiência de leitura se passa pela descoberta de uma obra dele. Um dia eu estava trabalhando numa lanchonete de rodoviária em Joinville como balconista. Eu atendi um senhor de gravata que pediu um pingado [leite e café] e um pão com burrinho, uma coisa tradicional de Joinville. Servi esse homem e fui carregar o freezer; de repente eu virei as costas e esse senhor tinha se evadido do espaço e tinha deixado dois livros sobre o balcão. Um desses livros era o “Distraídos Venceremos”, do Leminski, e o outro era uma Antologia Poética do Paul Éluard. A partir desse momento, as coisas se abrem para mim, a literatura se abre para mim. Então para mim Leminski é uma espécie de um pai, no sentido que, na hora em que eu me defrontei com a poesia dele, eu não saí mais dela. Eu me emociono quando eu falo dele, porque ele é um gigante pra mim. Eu acho que as opções que o Leminski fez de levar às últimas consequências a ideia de ser um poeta integral, de não ser um poeta burocrata, de ser um poeta 24 horas por dia, tudo que o Leminski fazia na vida dele, no jornalismo, na prosa, na poesia, tudo que ele fazia era uma coisa integral. As consequências que ele tirou disso foram duras, mas com certeza o Leminski, 20 anos após a morte dele, deixa um legado para as gerações futuras incomensurável, talvez um dos autores que deixou o maior legado de como ser poeta, de como fazer poesia.

ALT – Como pode ser descrito o perfil intelectual de Paulo Leminski?

M. V. – Eu acho que o grande barato é tentar desmistificar uma coisa que se tem do Leminski drogado, bêbado… Nós nunca podemos perder de perspectiva que ele foi um seminarista, então ele tinha uma cultura clássica muito sólida. E ele é um catalisador. Uma coisa é você ler Joyce, ler Ezra Pound, outra coisa é você absorver isso e catalisar. Ele faz dessas leituras um mix e consegue transformar isso em poesia. Ele é um grande teórico. O que é o Leminski no início da década dele? O primeiro livro dele, curiosamente, é o “Catatau”. O Leminski já nasce pronto. É muito curioso isso, porque o primeiro livro dele é um puta de um experimento. Como é que você entende, em 75, uma figura que está tateando num meio literário de repente aparecer com uma obra fundadora? E eu não consigo conceber daqui a 30 anos, por exemplo, nós teremos 50 anos sem Leminski, qualquer pessoa que pense em fazer literatura no Brasil, em discutir estética – porque essa era a questão do Leminski, não ler isso –. Ele dizia assim: “A linguagem está a serviço da vida, não a vida a serviço da linguagem”, ou seja, ele vive para construir linguagem –. Essa frase é perfeita para definir o surgimento do “Catatau”, para definir toda a trajetória dele. E ele é definitivamente um poeta preocupado com forma. Quando eu falo no Leminski, a única relação que eu consigo ver, porque há muitos estudiosos que querem relacioná-lo com a Beat Generation, a grande relação entre eles é a questão de atitude de vida. Quando o Ginsberg procura saber sobre o budismo, ele vai às últimas consequências, e o Leminski vai às últimas consequências de todas as experiências que ele faz. Ele é um inovador em todas as áreas. Então o Leminski é definitivamente um poeta fundamental para qualquer geração anterior ou posterior daqui para frente.

ALT – Como conhecer toda a poética leminskiana influencia no seu trabalho de escritor?

M. V. – A minha procura estética é um pouco diferenciada da do Leminski. Agora, as influências são sempre bem-vindas no sentido de formar leitor. Acho que a grande influência que o Leminski pode ter, e isso vai ser carregado comigo para o resto da vida, é que eu aprendi a ler poesia com o Leminski. Tu queres coisa mais bacana que isso? Eu aprendi a ler poesia com ele, eu não aprendi a ler poesia com o Joãozinho da esquina ou com aqueles catatais que as professoras de segundo grau te enfiam. Eu aprendi naturalmente, e depois eu fui descobrir outros poetas. Fundamentalmente é isso. Eu sou grato ao Leminski porque tudo que eu sei de poesia vem dele.

ALT – Você diz que o Leminski é um catalisador. De certa forma, o jornalismo também precisa dessa postura para absorver os fatos e o que vem antes deles. O que o Leminski jornalista tem a acrescentar hoje para que o jornalismo automatizado que ele denunciava encontre uma saída?

M. V. – O Leminski era acima de tudo um cara bem informado e um bom publicitário, ele tinha sacadas para tudo a qualquer hora. A passagem dele pelo Jornal de Vanguarda, da Bandeirantes, poderia mudar muito o jornalismo brasileiro de alguma maneira. Não sei quem disse, não lembro agora, que o lugar dos poetas são as agências de publicidade e as salas de jornalismo. Muitos poetas têm realmente essa dinâmica de inovação, e ele como jornalista inovou trazendo matérias sobre grafite, literatura e poesia num lugar que comumente não tem espaço para isso. Na televisão brasileira hoje o espaço do livro é exíguo. Eu acho uma hipocrisia terrível todo mundo falar de leitura, dizer que ler é bom, aí você pega uma programação de televisão, você tem propagandas de qualquer coisa, sobre tudo e mais um pouco, menos sobre leitura. Eu não gosto muito disso que acontece com a Flip [Festa Literária Internacional de Parati] e com outros eventos de literatura, que daí o jornalismo tem um pouco de culpa em estratificar isso, que é a carnavalização do autor. Por exemplo, o Leminski por muito tempo foi carnavalizado, a figura mítica, as pessoas querem comer o autor, querem devorar o autor quando deviam devorar a obra dele. No caso do Leminski, é uma coisa muito específica, ninguém que leia a obra dele vai conseguir desassociar da vida dele; e assim deveria ser com todo poeta. O poeta deveria manter a coerência de sua trajetória. Achei muito espantoso quando o Toninho Vaz disse que o Leminski não tinha psique. Isso é de uma crueldade… Mas voltando à questão do jornalismo, eu acho que é um caminho a ser perseguido esse que o Leminski trilhou. O jornalismo brasileiro, grosso modo, largo modo e hipermodo, é pasteurizado, geralmente é fruto de um monopólio muito cruel. Você vê o que é o Fantástico, a Veja, a IstoÉ, os caras conseguem destruir qualquer informação. Cabe à nova geração do jornalismo, que está preocupada com essa inovação, tentar modificar isso, tentar achar um meio. Também não vale copiar. O Leminski fez aquilo que era possível no tempo dele, com todos os recursos tecnológicos, tudo era muito precário. Hoje nós temos uma gama de recursos tecnológicos, é muito mais possível inovar se tiver uma mente brilhante igual a do Leminski.

ALT – Você não o conheceu…

M. V. – Infelizmente não o conheci pessoalmente, mas eu sinto que ele está ao meu lado todo dia. Eu acho que são poetas que estão comigo sempre e que eu me emociono quando falo. A Ana Cristina, parece que eu vi ela se matar, e parece que eu caminhei com o Leminski na saga dele. Torquato Neto também é um poeta que parece que está próximo de mim. É a minha formação, tudo que eu aprendi num determinado ponto da minha vida veio a partir do entrave, do embate com a obra dessas pessoas. É o teu germe, é onde tu começas a formular os teus raciocínios, a olhar o mundo. A leitura é o cotidiano. Você lê a sua rua primeiro, quando você é criança, depois o seu bairro, a sua cidade, depois o corpo da sua namorada, um livro, depois você lê o seu país, o mundo, depois você começa a ler as fantasias, aí você vai além-mundo. A leitura não é basicamente você sentar numa poltrona e ficar ali parado. Tudo que atravessa o teu olhar e entra é leitura. Eu tive a sorte de ter esse atravessamento, o Leminski entrou não só pelo olhar, entrou pelos poros, pelo intelecto, com livros… A grande coisa que poderia ser feita pelo Leminski hoje no Brasil seria uma reedição da obra completa dele por uma única editora. Entra na Internet, a primeira edição do “Catatau” tá 200 paus. Agora, essa é a grande questão de política pública, no meu entendimento, o Estado do Paraná tem esse compromisso com o Paulo Leminski. Eu sou gestor de políticas públicas e acho que é um dever cívico do Governo do Estado do Paraná, porque o Leminski é um poeta público. Procurar com quem estão esses direitos autorais, comprar os direitos autorais e ir a uma grande editora, que circule em todo o País, e dizer “nós vamos publicar 50 mil exemplares, 100 mil exemplares, 200 mil exemplares de todos os livros do Leminski e vamos distribuir em todas as escolas do Paraná, vamos dar acessibilidade à obra dele no Brasil inteiro”. É um dever cívico que o Governo do Paraná tem o com o maior poeta que a história da literatura brasileira pode ter criado.

ALT – Qual texto dele é o seu predileto?

M. V. – Não há nenhum específico, eu gosto muito da obra dele toda, gosto muito de “Agora é que são elas”, que eu acho um livro injustiçado, é um livro para ser redescoberto. O “Catatau” é sem dúvida a minha predileção fundamental, e tem umas frases dele de que eu gosto muito, tipo: “Quem come pedra sabe o cu que tem”. Tem um poema dele que eu não lembro exatamente de cabeça, eu declamava isso: “Cagam ricos, cagam padres, cagam reis e cagam fadas. Não há nada que se compare à bosta da mulher amada”. Era alguma coisa assim, não era exatamente isso, porque eu não me lembro de cabeça, mas ele ironizava essa coisa do seminário onde ele esteve, ele fez uma brincadeira, naquela pujança, que não sei se nós encontraremos de novo na literatura brasileira.

ALT – Se você tivesse oportunidade de dizer alguma coisa a ele, o que diria?

M. V. – Se eu tivesse a oportunidade de me encontrar com ele, eu ficaria em silêncio. Eu entendo que, como um homem que absorveu toda a cultura oriental, ele entenderia o que isso quer dizer. É isso.

Leminskiando – parte 2

O paideuma leminskiano

A primeira entrevista de fato sobre Leminski publicada no Gazeta ALT trouxe a voz do jornalista e biógrafo de Leminski Toninho Vaz. “O bandido que sabia latim” tem a ingrata tarefa de contar a história de uma pessoa com tantas referências que não caberiam na obra de toda uma vida.

Toninho Vaz foi bem-sucedido, até pelo reflexo de uma amizade de 15 anos com o poeta curitibano. Na entrevista, Vaz deixa explícita essa relação e faz várias marcações que indicam a atualidade de Leminski. O Leminski professor, agitador cultural, revelador de talentos, comprometido com a evolução da linguagem.

Nada, vale frisar, é mais atual que a universalidade de se trabalhar com a linguagem. E Leminski é, ele próprio, um dos guardiões do universo da linguagem, armado que estava com palavra. “Aliás, ele era uma metralhadora giratória se você for ver por esse ponto de vista”, como disse Toninho.

Entrevista publicada em 11 de outubro de 2010, na edição 86.

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Gazeta ALT - Edição 86

Diagramação e arte: Jeferson Richetti
Edição: Anderson Antikieivcz Costa

Um catatau de vidas

Entrevista e fotos: Julliane Brita

A Toninho Vaz não cabe o tratamento de senhor apesar da barba e dos cabelos brancos; aliás, quando o encontramos, recostado no balcão do bar da Vila Cultural Cemitério dos Automóveis, em Londrina, além de refutar qualquer formalidade, afirmou ele ser capaz de baixar o próprio Leminski depois da segunda dose se fosse necessário.

Ninguém duvidou. Afinal, ser biógrafo não é um trabalho fácil, é preciso desenvolver habilidades inimagináveis.

É sempre uma janela aberta sobre um abismo contar uma vida inteira em um livro; por mais páginas que o exemplar de papel tenha, nunca terá a complexidade do descrito. No caso de Paulo Leminski, a árdua tarefa ficou a cargo do jornalista curitibano que tem na bagagem 15 anos de amizade com Leminski e a biografia de outro personagem contracultural brasileiro, Torquato Neto. Toninho Vaz, vestindo uma camiseta com o título de um dos livros de Leminski – Distraídos venceremos –, falou ao ALT sobre o amigo e sobre a figura mítica do Poeta do Pilarzinho. Se Leminski deu as caras por lá, não podemos provar, mas que ficaria feliz em ver alguém vestindo um de seus poemas, isso ficaria.

ALT – Quem foi Paulo Leminski para você?

Toninho Vaz – Paulo Leminski foi, antes de qualquer coisa, meu amigo. Eu conheci o Paulo desde antes de ele ter essa fama de uma vivência como poeta e literato. Ele era quatro anos mais velho do que eu; eu tinha 22, ele tinha 26. Eu me tornei amigo do Paulo, admirador, porque me fiz aluno dele sem o ser. Eu já estava na faculdade e ia aos cursinhos pré-vestibular para assistir às aulas que ele dava, porque eram muito interessantes, eram aulas que me fizeram gostar do aprendizado, do saber, da literatura, porque ele sabia ensinar. Eu ia lá, me sentava na última carteira, eu não era nem aluno matriculado no cursinho dele. Se você sentasse lá, você não descobria qual era o assunto da aula. Se era inglês, geografia, português. Porque ele misturava tudo, ele não tinha essa coisa estanque. Eu lembro bem, nos anos 60, quando o Leminski tirou de dentro de uma sacola um disco de vinil e abriu uma radiolinha daquelas que a tampa era o alto-falante, rodou o vinilzinho ali e dizia assim pra turma:

“Anote aí, ele se chama Bob Dylan, com ípsilon”.

Hoje eu acho graça disso, porque eu tenho todos os discos do Dylan e, embora eu já o conhecesse, os alunos de um modo geral não conheciam. Ele prestava esse tipo de serviço à cultura. Depois, o meu amigo Leminski se tornou um poeta conhecido no quarteirão dele, e depois em Curitiba. E o resto a gente já sabe.

ALT – Você disse em seu livro que conheceu Leminski no início de seus estudos de jornalismo e que, depois disso, esses estudos começaram a fazer sentido. Como ter conhecido o Leminski influenciou em sua carreira de jornalista?

T. V. – A maior influência que eu tive na minha carreira é o Leminski. Nem os meus professores tiveram essa influência na minha vida. Eu era tacanha quando conheci o Leminski. Por razões inexplicáveis da vida, eu era um cara embotado. O Paulo percebeu em mim alguma qualidade, algum talento pra alguma coisa muito cedo. Ele não mentia, ele não brincava com esses valores culturais. Costumava até atacar aqueles que ele considerava falso e não gostava, e enaltecer aqueles de que ele gostava. Então, quando ele me falou assim de cara, eu me lembro bem desse dia, foi muito marcante pra mim, é como se existisse antes e depois daquilo ali: “Velho, você tem que continuar escrevendo assim, você tem que treinar mais, você tem que fazer uma cunha, uma coisa mais direcionada, porque você tem a pegada”. Eu não sabia que eu tinha a pegada, eu não sabia que tinha alguma coisa possível dentro de mim que pudesse reverter em trabalho dessa natureza intelectual. E, no entanto, levei a sério o que ele disse, e no processo de vida com ele, depois disso a gente viveu mais 15 anos de amizade, ele me viu crescer como jornalista. Quando eu fui correspondente da Globo em Nova York, ele ficou orgulhoso, porque eu dava esse retorno pra ele, eu dizia “você é responsável por isso, cara, pelas merdas e pelas coisas boas que eu estou fazendo”. Até hoje, por exemplo, que eu abandonei o jornalismo e só faço livros, a presença dele se tornou ainda maior. E eu continuo bebendo das fontes do Leminski.

ALT – Parece que agora a academia está revisitando a vida e a obra de Leminski. Qual é a importância disso?

T. V. – A novidade que eu trago, e essa tem sido a tônica das minhas palestras, é dizer que há algo de novo nesse horizonte do Paulo Leminski, e a coisa nova é que os garotos, os universitários, abandonaram aquele folclore da birita e das drogas a que ele estava ligado. Esses guris de hoje não estão mais querendo saber disso, eles estão mais interessados em saber se o Paulo Leminski tinha mesmo uma bagagem capaz de representar o sentimento deles, jovens, com autenticidade e honestidade, coisas que os meninos procuram aí. Eles são estudantes universitários, eles são a academia, eles são cúmplices desse status que o Leminski passou a gozar de poeta, depois de 20 anos de morte, consolidado, e cada vez mais o folclore da boemia dele vai se extinguindo.

ALT – Qual o seu texto predileto do Leminski?

T. V. – O “Catatau”. Eu acho um trabalho notável, de pouco acesso, pouco digerível, difícil, pra iniciados; como Leminski dizia, é texto de escritor para escritor. É uma homenagem ao Guimarães Rosa, uma referência a “Grande Sertão: Veredas”, que é um texto que a gente sabe que meia dúzia leu. O “Catatau” tem essa característica, mas a importância dele é como ponta de lança de uma vanguarda de linguagem que se usava nos anos 60 – ele começa a fazer esse livro em 66 –. Não era um texto que queria vender livros, pelo contrário, enterrava os editores. No entanto, é como ele dizia, “John Cage um dia vai ser música de elevador”, já é; o Paulo Leminski já é best-seller… Esses caras fizeram com que a linguagem avançasse; o contrário disso é “Meu pé de laranja lima”. Com todo respeito, há muito mais milhões de leitores para o “Meu pé de laranja lima” do que para o “Catatau”, mas o meu texto mais sagrado do Paulo é esse.

ALT – Você comenta que é um texto para iniciados. O que você diria a uma pessoa que deseja se tornar um iniciado para ter acesso aos textos de Paulo Leminski?

T. V. – Na palestra “Introdução à poética de Leminski”, ofereço ao leitor uma ideia de alicerces em que ele estruturou essa poética dele, ou seja, uma coisa que ele pinçava de Ezra Pound, é o paideuma poundiano. O que é isso? É um sistema que fornecia às gerações futuras de onde ela deveria começar a ler. Esse era o abecê da literatura do Leminski. O paideuma do Ezra Pound são os ícones, todo o resto é seguidor, diluidor. Então ele coloca lá em cima só os gregos, as sumidades, a coisa mais erudita possível. Eu criei um improvável paideuma leminskiano, que são aquelas influências que o Leminski recebeu. Começa com o “Os Sertões”, de Euclides da Cunha, que foi o primeiro livro que o marcou, por razões que vêm de o pai dele ser militar e de ele ter viajado em acampamentos militares no interior do Brasil. Aí você vai vindo com ele, com os clássicos, os românticos, o Fagundes Varela, o Olavo Bilac, com aquilo tudo que tá no currículo. Aí você pula pro modernismo, a literatura estrangeira, europeia, Baudelaire, e o resgate da crítica. Daí ele vai para os Concretos, os irmãos Campos e Décio Pignatari, que foram os que apresentaram a ele o Ezra Pound. Uma pessoa interessada em se aprofundar nesse viés literário do Leminski e adjacências deve tentar ler o “ABC da Literatura”, do Ezra Pound, que não vai servir muito porque você não vai começar a ler línguas mortas agora, mas você entende o sentido da escolha do criador e a necessidade de você se desvencilhar dos diluidores, o cara que tá imitando aquele lá em cima. O Leminski tem um critério, ele era um grande professor por causa disso. Entre os modernistas, ele vai preferir Oswald de Andrade em relação ao Mário [de Andrade]. Por quê? Porque experimentava mais a linguagem. O papel do Leminski como vanguarda nos anos 60 era esse, era de ir pra frente. O texto comportado era uma coisa que não precisava de ajuda, não precisava de incentivo, é isso que se consume, o bestseller.

ALT – Leminski disse que a poesia diz “eu denuncio”. O que, em sua opinião, ele queria denunciar com a experimentação da linguagem que ele propunha?

T. V. – Eu não sei o que ele queria denunciar, ele queria dizer que a poesia pode denunciar. Por exemplo, nos anos 60 e 70, na ditadura militar, o Leminski sofria em Curitiba porque era considerado um poeta de direita, porque não fazia texto engajado. A poesia dele camuflava uma rebelião, e, no entanto, aquela visão estreita dos poetas engajados em partidos, facções políticas e outras coisas do gênero, queria a palavra explícita, como “Unidos venceremos”. O Paulo Leminski faz “Distraídos venceremos”. É o contrário. Não pegue na arma, cara, vai cuidar dos teus filhos, vai namorar com a guria na cachoeira, faça as coisas com a perfeição ética que você tem que fazer que você muda o mundo. Ele nunca foi de direita; assim que ele pode, publica uma biografia do Trótski. Ele acreditava na forma revolucionária e não nesse conteúdo revolucionário. Ele não acreditava que palavras de ordem movimentassem pessoas. Você conseguia fazer isso no ABC Paulista, numa fábrica de metalúrgicos, porque os caras estavam atrás do salário deles. Não era um engajamento exatamente intelectual e político sobre o que acontece no País. Enquanto que o Leminski é de uma esfera intelectual, é feito um pensador, não vai pegar em pistola. A pistola para ele era a palavra. Aliás, ele era uma metralhadora giratória se você for ver por esse ponto de vista.

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A primeira parte da série pode ser lida aqui.

Fluxo de consciência

Acordei no meio da noite. Pela vigésima vez, doze das quais chorando, cinco crescendo, três morrendo. Olhei, certamente não pela última vez, se as chaves estavam ao lado do travesseiro. Não estavam, e minha mentira cresceria a cada palavra falida com que eu tentasse te encantar.

O encanto, nota-se com pesar, não se compra a preço baixo. Quem doma palavras é sempre, antes de tudo, domado.

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Quando meus pés me levaram sem muita objeção para dentro do ônibus, eu mal realizei há quanto tempo não repetia essa ação que fora comum em outra era da minha vida – vivo em eras, você já deveria saber -. Meses, anos, e meu equilíbrio já tão faltoso não sabia fingir o comportamento de antes no sacolejar das quadras buracos desvios curvas

Queria descer no primeiro ponto, voltar à casca da qual, invariavelmente, me arrependo de ter saído uma quadra depois, agradeço por ter deixado na seguinte e que me esforço para esquecer depois de quinhentos metros, mas houve um aspecto de passado pelo qual sou seduzida por certo.

O ônibus mudando de rota – há tanto tempo entre as eras que os caminhos todos mudaram – faz renascer o medo pueril de ser conduzida sem minha vontade, mas despertou algo que mesmo os tantos aniversários que me separam da menina medrosa não pensariam possível. Ele me fez querer ficar. Eu fiquei.

Leminskiando – parte I

Leio Leminski desde que não consigo lembrar, quando minha mãe, professora do Estado do Paraná durante 33 anos, ganhou uma coleção de livros da Secretaria de Educação em que figurava o nome do polaco até então desconhecido para mim.

Devorei o livro, mas não tive acesso a mais nada de Leminski durante muitos anos. A figura ficou em banho-maria até que ressurgiu tardiamente, em 2007, quando eu já estava na universidade, e tornou-se, como eu digo no texto abaixo, aquele que me deu esperança. E aqui vale um agradecimento especial ao mentor que possibilitou isso: Doutor Silvio Ricardo Demétrio, professor e multiplicador de sólidos conhecimentos culturais em cabecinhas frágeis das salas de comunicação do Velho Oeste.

Aí, Paulo Leminski não era só mais um escritor paranaense de um livro que eu li na infância. Revelou-se a mim o poeta, o jornalista, o publicitário, o multimídia. Um avis rara que me trazia novos caminhos para pensar o texto em todos os âmbitos em que eu me aventurava – bem inocentemente, a propósito -.

Foi com muita felicidade que vi o bandido que sabia latim ressurgir e cair nos dedos de internautas que descobriram o haicai como possibilidade para as palavras rápidas da rede. A publicação de “Toda poesia”, pela Companhia das Letras, foi comemorada como um gol em final de Copa do Mundo. Eu e a trupe que respirava Leminski na mesma época fazíamos nossas rezas budistas para que tudo de Leminski fosse reeditado.

Agora, depois de alguns anos longe do Gazeta ALT, o caderno de jornalismo literário e cultural de que orgulhosamente fiz parte, reproduzo aqui as entrevistas sobre Paulo Leminski que tive o prazer de fazer durante 2009, ano em que produzi meu trabalho de conclusão de curso com a ajuda dos mais incríveis companheiros – Jeferson Richetti, Anderson A. Costa, Bruna Hissae, entre outros não menos importantes -. O primeiro texto saiu na edição 85, de 4 de outubro de 2009, e foi reproduzido na íntegra abaixo.

Os próximos vêm com mais histórias, que esta já está quase mais longa que minhas letras no próprio ALT.

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gazeta-alt-ed85-04-10-09-leminskijpgDiagramação e arte: Jeferson Richetti
Edição: Anderson Antikieivcz Costa

Um ponto do conto que não se conta

Julliane Brita

Almir Feijó, em 1978, perguntou a Paulo Leminski qual era a bronca dele com o conto. Afinal, um literato, signo de virgem, de 24 de agosto de 44, nascido em Curitiba, que vivia literatura pelos poros, era contra uma forma da arte em que foi mestre. Novidade não é que ele pensava a forma como poder, e este era especificamente o ponto que o movera, que o fez movimentar uma passeata contra o conto e carregar um cartaz que dizia:

O CONTO
MORREU!

A bronca, de fato, disse o Polaco, referia-se à facilidade gerada pela forma do texto que conta uma história mais curta que o romance. “O conto representou, no Brasil, a mesma coisa que o Volkswagen representou, em termos, digamos, vários. O Volkswagen colocou a classe média sobre rodas e o conto deu a todos a ilusão da possibilidade de uma carreira literária, que é uma coisa bem mais complicada. E o conto tomou conta. Foi amarrado por concursos patrocinados por estados da Federação. Por entidades oficiais. Por revistas particulares. Foi cercado de todo um poder de tal forma que hoje é o gênero hegemônico, o gênero no poder no Brasil. É aquele que conta com o maior número de facilidades editoriais. É aquele que encontra abertas as portas das editoras. É aquele que é contemplado com as mais polpudas premiações estaduais, premiações já milionárias. É uma verdadeira loteria literária que o conto proporcionou no Brasil. Sou contra isso que se faz em torno do conto e com o conto. Obviamente, não sou contra uma forma, apenas. Aí se trata mais do que uma forma. Se trata de todo um negócio. Um grande negócio que se fez em torno do conto. Pra mim, em detrimento, digamos, da produção propriamente literária. Da produção textual”.

Leminski, intelectual multimídia que tratou da linguagem como ponto central do trabalho que exerceu em muitos campos, tinha uma visão evolutiva da literatura. Pensava ele que o texto, o fazer literário, evolui como a ciência. E ele estava comprometido com essa evolução. “Acho que o conto é acadêmico, que ele retarda essa evolução. Retarda porque, principalmente do modo como ele vem sendo encarado no Brasil, é uma espécie de última defesa do sistema literário que está completamente bichado pelos grandes meios de massa em volta dele e que tendem a dissolvê-lo. (…) O conto é um fator da involução textual. Tem funcionado como uma força conservadora e retrógrada. A existência dele impede que o texto ganhe a dinamização que vem dos grandes meios de massa e que tenderiam a transformá-lo numa outra coisa, já, inclusive, para além da própria categoria de literatura, que não me interessa mais. Pra mim, a literatura não passa de um fetiche universitário”.

Antes que afoitos recriminem um comentário que não entendem, Leminski renegava a literatura da forma que estava sendo produzida – e não podemos dizer que muito tenha mudado desde lá –. O comprometimento do “bandido que sabia latim” passara a ser, àquela altura da vida, já aos 34 anos (dez antes da morte prematura), com uma coisa para ele mais complexa, a cultura. Se ele gritou que o conto morreu, uma forma tornada descaminho e involução, é porque a inquietação gritou mais alto. Da mesma forma que berrou a vida inteira nos ouvidos de bigode e sagacidade linguística.

Chamaremos Leminski, neste caderno, de “escritor”, “poeta”, “intelectual”; mas a amplitude da aura que exala a obra e os contados da vida desse paranaense parece fugir ao campo semântico de quaisquer dessas palavras. É preciso, entretanto, dizer. Que há vinte anos ele deixou a vida-poesia que vivia de forma ressoante, mas a linguagem foi tão pensada que o conta até hoje. E nós o contaremos também, pelas próximas edições, com entrevistas exclusivas de pessoas que o conheceram ou que admiram e estudaram a obra profícua. Deixa-nos um tanto menos preocupados o fato de que o próprio sui generis ofereceu-nos algumas autodenominações, que usaremos sem pedir licença: “cachorrolouco”, a “besta dos pinheirais”, o “ex-estranho”, “o que chegou sem ser notado”, o “anarquiteto de desengenharias”, o “bandido que sabia latim”.

Semelhante trajeto de palavras-definição fez o poeta Haroldo de Campos quando o determinou o “Rimbaud curitibano com físico de judoca, escandindo versos homéricos, como se fosse um discípulo zen de Bashô”; o chamou ainda de “intelectual completo”; Helena Kolody, suavíssima poeta paranaense que bem o conheceu, nele identificou “um marco original e luminoso em nossa literatura”. Se Augusto de Campos, outro de nossos poetas, o

denominou o “maior poeta brasileiro de sua geração”, não somos tão generalistas nem seríamos capazes de o encaixar num determinismo menor. Quando nos perguntam quem foi Paulo Leminski, dizemos apenas, com variações insignificantes, que foi aquele que nos deu esperança.

Injustificável até determiná-lo com números e histórias não nossas. Entretanto, é necessário dizer aquilo que já disse no começo e retirei da descrição que o brasileiro Paulo Leminski Filho fez dele mesmo. Filho de Paulo Leminski – por sua vez, filho de poloneses da província de Naráyow – e de Áurea Pereira Mendes, filha de um paulista e de uma paranaense, faleceu na mesma cidade em que nasceu, no dia 7 de junho de 1989, aos 44 anos. Na precocidade bela dos poetas, Leminski diz ter feito o primeiro poema aos oito anos, “O Sapo”, “cuja temática remetia à vida campesina e bucólica do interior do Brasil”.

Entre detalhes talvez refutáveis e esmeros de nossa parte com relação ao ídolo recrutado a figurar em nossas páginas, gostaríamos de lembrar que a vida de um poeta é, por vezes, o mais refinado poema deixado por ele. Fomos em uma equipe afinada buscar as entrevistas que apresentaremos por estas páginas em uma terra muito diferente apesar dos apenas 400 quilômetros que nos separam dela. A cidade de nome inspirado em Londres nos encantou pelo Londrix – Festival Literário de Londrina, realizado de 22 a 27 de setembro.

A quinta edição do festival relembrou os 20 anos da morte de Leminski e nos ofereceu duas oportunidades únicas se consideramos nossa pífia localização geográfica: ouvir sobre Leminski e participar de um evento literário – coisa inexistente por aqui –. Um evento, por sinal, patrocinado pelo governo do Estado e pelo município de Londrina, que fizeram o que não se vê com frequência: incentivaram e não atrapalharam com pedantismo e verborragia. Sobrepôs-se, então, a ótima direção de Christine Vianna e Marcos Losnak, e a colaboração de muitos outros nomes que foram mais braços, pernas, cérebros e vontades.

O dia que nos recebeu foi a sexta-feira, 25 de setembro, em que o jornalista Toninho Vaz, escritor da biografia de Leminski “O bandido que sabia latim” (2001), discursou com o título “Introdução à Poética de Paulo Leminski”. De quebra, assistimos à mesa com os escritores Marco Vasques, Rodrigo Garcia Lopes e Maurício Arruda Mendonça, de tema “O Universo Leminskiano”. Todos muito solícitos e dispostos a relembrar Leminski para que o mito não vire superficialidade.

As entrevistas e o conteúdo das palestras oferecidas em Londrina figurarão nas próximas edições do Gazeta ALT. Nem em conto nem em haicai, forma oriental de poesia breve muito utilizada por Leminski, mas em palavras sinceras que pretendem reviver uma história que não morre facilmente e esgueira-se sutilmente humorada por mentes sedentas. Para o ponto ser lembrado e pedir mais, um trecho da entrevista de Maurício Arruda Mendonça.

“Paulo Leminski foi um grande poeta, prosador e ensaísta brasileiro. Sua marca, creio, foi conseguir unir informação de alto teor teórico e artístico com linguagem clara e ágil, capaz de dialogar com leitores especialmente os jovens. A formação de Leminski é uma proeza. Uniu os conhecimentos adquiridos em Seminário Beneditino (fortes no latim, grego e línguas modernas); conhecimento de história do Brasil, pensamento contracultural, conhecimento das vanguardas literárias dos anos 50 e 60, a própria teoria marxista, o estruturalismo e, especialmente, o ativismo cultural, já que era um excelente polemista. Como podemos ver, um perfil que nos falta hoje em dia, e que foi momentaneamente ocupado por figuras polêmicas como um Gerald Thomas por exemplo (naquilo que ele teve de mais criativo). Estudando uma de suas obras-primas, o romance-ideia “Catatau” em meu mestrado, fiquei surpreso em constatar a quantidade de referências literárias, históricas e culturais que Leminski conseguiu reunir, uma coisa que, hoje, só se conseguiria com a Internet. Portanto, Leminski é sim um dos grandes intelectuais formados na leitura longa e meditada de muitos e muitos livros. É como eu digo: Leminski faz muita falta hoje, e creio que, se vivo, teria um dos blogues mais acessados de nosso País. Ele era talhado pra esse tipo de mídia”.