A hora da saudade

A seca no Lago de Itaipu levantou as saias do passado e deixou à mostra a vida invadida pelo progresso.

Vila reaparece com seca no Lago de Itaipu

Os tijolos à mostra sussurravam um segredo nada encoberto: é na hora da penúria que a saudade se apresenta, visível em meio à ruína.

[A saudade, quando chega, é um grande sinal de que já está tudo destruído.]

Sete investigações sobre a esperança

saída

1. Sozinha, eu dirigia pela cidade, por ruas conhecidas, cantando de forma descompassada. De repente, na mudança de música, um silêncio me mostrou o banco vazio, que me lembrou de todos os espaços vazios que eu frequentara na semana. Quando olhei para o lado, havia apenas o que não havia. Pensei no cadáver que eu carregava no porta-malas e engoli o sangue que restara na boca de uma dor que eu achei por bem sentir.

2. A saudade não é uma coisa grande. Ela é bem pequenininha, porque se infiltra. A saudade é líquida e se disfarça de vontade de rir, coceira nas costas, bicho no chão, passeio sem corrente, faixa branca no carro, último olhar no estacionamento, ensinamentos sobre o carinho, garrafa de água vazia, carne assada, primeiro abraço na saída, tombo no asfalto, folha de fichário, contorno dos olhos, golpe de braço, primeiro gole de cerveja, sapato sem salto, palavras numa folha de caderno. A saudade é coisa pequena que mata gente grande.

3. No chão sujo da boate, eu olhava para o equilíbrio dos altíssimos saltos e pensava onde foi que eu havia deixado o meu comedimento, se ele algum dia existiu. Em algum momento, eu e meu sapato sem salto ficamos tão pequenos que precisamos nos esgueirar entre pernas, cacos e vaidades. Olhei para cima num esforço hercúleo e enxerguei a placa da saída. O homem na placa corria. Eu também queria correr. Na impossibilidade de sair, dancei.

4. A lâmpada estroboscópica é um dos meus gatilhos mais concretos. A luz que pisca incessantemente faz do cenário um filme; os frames lembrando que há o reticente e que a própria coisa omitida também conta a história. Relembra o desmaio, a fraqueza, a solidão. O medo, o ser ausente e tudo o que ignorei, os limites que testei, o acordar no hospital sem saber como, o último olhar no espelho. A vergonha, os amigos que expus, a imaturidade. Quando a luz pisca, acende em mim o desamparo. E eu sinto vontade de apagar. Me apagar.

5. No diálogo sobre o tatame, eu sempre intrusa, escuto sobre a ausência de sangue quente que faz o rapaz do ocorrido aguentar pancada calado, deixar que a moça do contado o desfaça diante dos conhecidos na mesa do bar. “É por isso que ela é corna”. Penso quieta que ele deve se imaginar o condutor da situação. Ela desfaz, mas fica. Ele, quando os olhos da plateia silenciam, a manda embora só porque sabe que ela não vai. Ela faz o que quer. Não importa a ela a fidelidade, importa o controle. Ela é corna, mas quem tem os cornos amarrados é ele.

6. Quando vejo a fotografia, a ação, as palavras calculadamente empregadas na entonação que eu mesma inventei e plantei naquele olhar, as cortinas se abrem. Não há palavras que sirvam, porque palavra não é coisa que se vista para parecer bonita no retrato. Palavra que é palavra acaricia, mas também fere. Não nasceu a palavra, como não foi feito o sentimento, para o conforto de quem a profere ou de quem a recebe. Não se diz palavra vazia quando os ouvidos que as escutam sabem ler nas entrelinhas. E nas linhas escancaradas.

7. Guardo em caixinhas veladas a preocupação dos outros comigo. Às vezes me rebelo frente ao controle com que pode se vestir o cuidado e tiro dele as vestimentas. Não há falsas esperanças em mim, porque não há esperança alguma. Há um pouco de decepção, é claro, e isso inevitavelmente vem da espera, mas a decepção não é nova. Ela é tão velha quanto a certeza do que não virá, tão antiga quanto o medo e o entendimento. A esperança pode até querer brincar comigo às vezes, mas ela não existe mais do que a espera de que o sinal para seguir em frente acenda. E ele acende.

Da inspiração: Bolhas, champanhe, cowboy.

Plataforma Lattes ou o Orkut acadêmico

É incrível como repetimos padrões comportamentais não importa a rede social. Ainda que cada uma guarde bem um perfil, de acordo com a necessidade a que se presta, ainda somos nós por trás dos teclados – na frente dos espelhos, reunindo pedrinhas, de preferência as mais brilhosas, para mostrar aos amigos, e, com alguma sorte, aos inimigos -.

Essa reflexão nada abstrata e pouco aprofundada me veio à mente porque, juro, tenho pretensões de finalmente deslanchar o tal do currículo na Plataforma Lattes. Desde que saí da universidade – e que penso em voltar para lá – encontro os devidos subterfúgios para não enfrentar a tarefa massacrante que é reunir os cacos da graduação, limpá-los com alguma dignidade e superar o sentimento que, suponho, seja vergonha de levá-los a algum lugar para me representar.

Uma rápida navegada por currículos de conhecidos já transforma toda minha força de vontade em constrangimento e em negação da vida acadêmica. Não é de hoje, aliás, que a plataforma é chamada carinhosamente por mim e por meus amigos de “Orkut da Academia”. Para mim, a melhor história é a de uma professora mestre repleta de rigor metodológico que colocou o certificado do show do MacFeck, grupo europeu de folk que em sua trajetória meio hippie passou por Cascavel duas vezes. Absolutamente tudo a favor do MacFeck; apenas tudo contra a falta de limites do ridículo.

Macfeck
“Exigimos a retirada do nosso nome do currículo por motivos de: MINHA SENHORA, tenha vergonha nessa cara!”

Já conformada de que terei que atualizar meu perfil no Orkut (risos chorosos), vasculhei alguns certificados e encontrei o único que me parece suficientemente adequado para representar meu perfil. O fato de ele ter sido conseguido na terceira série do primário é irrelevante, já que eu certamente contrataria ou orientaria o trabalho de alguém que ficou em primeiro lugar no pique-bandeira. O HowStuffWorks me ajuda a explicar:

Esta é uma brincadeira que trabalha a noção de estratégia e trabalho em equipe: divididas em times, as crianças têm de atravessar o território inimigo e pegar a bandeira do adversário sem deixar que a sua seja roubada. Se um jogador for “pego”, seus colegas se organizam para resgatá-lo sem deixar o objetivo principal de lado.

pique-bandeira
Prêmios e títulos: primeiro lugar no pique-bandeira.

Quando a verdade faz uma visita

A verdade vem a qualquer hora do dia, não se importa com sua capacidade cognitiva para recebê-la à porta, não diz boa noite – ou bom dia, desculpe o horário, o trânsito foi complicado, a viagem? ah, cansativa, cansativa, várias horas, o ônibus os passageiros a estrada perigosa e o medo? medo, medo, mas chegamos graçasadeus -, percebe o rosto desfigurado pelas lágrimas, um vale cravado na rocha da face, e lança apenas um olhar furtivo de desprezo pela fraqueza da pedra diante da água. Era somente água, dizem os olhos repulsivos da verdade.

Segure o choro, querida, diz a verdade enquanto me leva à cozinha. É feio chorar em frente às visitas. Eu não gosto de como a verdade rima, de como brinca, irônica, com minha incapacidade de me mostrar altiva, de me fazer presença quando só há em mim o que inexiste. Não fuja com as palavras, querida, diz a verdade ofendida. As palavras só sabem o caminho de volta, só sabem se amontoar de novo no dicionário, largadas dolorosamente umas sobre as outras. Definem-se? Não, amontoam-se, essa é a realidade sobre elas, querida, elas não levam a qualquer lugar porque para onde se vai não há o que se diga.

Eu posso sentir a confusão se formando entre o vapor que sai da comida. A confusão é minha. Eu conheço o gosto, mas nunca descobri como jogar as sobras dela fora. Eu começo a raspar as panelas, tento limpar os pratos, quebro dois copos e estilhaço uma jarra. A verdade me despreza a cada movimento, a cada esbarrão incontido, a cada farelo que macula o chão. A verdade não tem pena. E num gesto brusco dissolve toda a névoa. Não sobra confusão para encher um prato magrinho. Você acha a confusão ruim, querida, mas é o que lhe mantém viva. Sem a confusão que você cozinha com aparente despreparo e medida, você míngua, rareia. A confusão você até acha bonitinha, já que foi ela quem carregou suas culpas, querida. É ela quem carrega as culpas que, de fato, são suas.

No meio do cômodo, de repente, me vejo juntando os restos no chão. A verdade faz ânsias de me afastar e perde a rima. Na realidade, querida, você está sendo patética o suficiente para não conseguir receber-me em seus aposentos. Sem a confusão para me alimentar, encaro a verdade nos olhos. Não suporto o tom de arrogância dos ossos pontiagudos do rosto dela. Só suporto encará-la por pouco mais de um instante de lucidez. Veja bem, querida, assim se dá o real, você não consegue sustentar um olhar sem notar o quanto sou feia. Você não me suportaria nem para uma visita, minha cara, e eu vou deixá-la assim que o dia estiver disposto a me levar à burocracia da rodoviária.

Quando vira as costas, a verdade me mostra muito mais do que a cara que tentou antes me enfiar goela abaixo. A verdade está nua, por isso viaja de madrugada. A verdade está crua, e me faz cozinhar a confusão na esperança de se misturar aos vapores do cozido e lançar-se ao fogo, queimar ou se tornar mais palatável.

A verdade não diz verdade nunca, e recarrega-se por aí de sinônimos burros que não querem dizer metade do que a verdade pode falar.

Ao primeiro aniversário do ano

I

Querida, mando-te
uma tartaruguinha de presente
e principalmente de futuro
pois viverá uma riqueza de anos
e quando eu haja tomado a estígia barca
rumo ao país obscuro
ela te me lembrará no chão do quarto
e te dirá em sua muda língua
que o tempo, o tempo é simples ruga
na carapaça, não no fundo amor.

Drummond

Tiago,

Você hoje acordou três anos mais velho do que eu. Só que quando eu olho em seus olhos enxergo algo de um mistério pueril, que precisa de proteção, que precisa do meu abraço sempre disposto a enredá-lo na viscosidade do meu apego.

Só que você não precisa disso, não precisa de nada. Você é autossuficiente de todas as formas possíveis. Se vira com a dor, com o enrubescer, com o apaixonar fremente; partilha a felicidade consigo mesmo, da maneira mais legítima que pode haver. Sabe lidar com a graça, com a catástrofe e com o desfavor da humanidade. Lida com o que é preciso e com aquilo de que não precisaria cuidar, porque está em você o que inspira o entendimento do compadecer naqueles cujo privilégio maior está em ter cruzado seu caminho.

O que enxergo, percebi há tempos, é minha vontade de não perder seus olhos jamais. Você não precisa dos meus cuidados e eu nunca poderia ser um bom ombro para as lágrimas que escavam  caminhos tortuosos em seu rosto que deveria ser só sorrisos. Não há o que eu pudesse acrescentar, já que você é alma coletora, e reúne em si o melhor dos outros, os melhores dos outros. Dos corpos celestes, você é astro rei, carregando planetas, estrelas anãs e outros seres menos luminosos em sua gravidade, que é sempre suficiente para alçar mais um à luz que lhe é inerente.

Você hoje acordou três anos mais velho do que eu. Eu vou correndo, diminuo um pouco a distância, mas não chego a alcançá-lo. Há anos-luz de seu brilho, sou uma lua modesta que você insiste em iluminar.

Eu, por fim, tomei conta de meu lugar a seu lado. Todo dia em que você acordar três anos mais velho do que eu, eu vou ser lua brilhando em sua órbita, para lembrá-lo de que sua luz nunca apaga porque se multiplica a cada ser sem fulgor a que você decide dar vida.

A vida em você é infinita. Seu coração não bate, irradia. E somos todos nós cativos de seu brilho.

Obrigada por isso. Parabéns por todo o resto.

Com sempre amor,

J.

Por que você não escreve um livro?

Que o espaço de comentários é o chorume apodrecido do lixo velho da internet, ninguém ousa discordar, mas de vez em quando é possível encontrar amor em meio aos detritos. Uma espécie de identificação vergonhosa, é certo, mas ainda uma forma de encontro.

Se há dúvidas para o amor, lembro logo que não é apenas a resposta, a pessoa teve o trabalho de escrevê-la. E quando alguém se dá ao trabalho de escrever alguma coisa meu nível de admiração – ou de desprezo – eleva-se de forma descontrolada.

Da série “Pessoas que eu gostaria de conhecer”.

– “This song is sooo me.”
– “Good for you, why don’t you write a book?”

Blueberry, um beijo e uma música

De Norah Jones, eu não sei quando comecei a gostar, mas já faz bastante tempo que a voz doce e quase despretensiosa me capturou. De blueberry, a frutinha tímida a que chamamos de mirtilo no Brasil, foi lá por 2006, quando a palavra passou a ter sentido de doce, tristeza e desejo. Com a maioria das coisas, eu lido assim: primeiro, nasce o sentido no fundo do pensamento; depois, passa a ser desejo de sempre, cristalizado no não saber mais se algum dia não esteve ali.

Quando me deparei, então, com o trailer de My Blueberry Nights (2007), muitos sentidos reunidos, passei a desejá-lo como à torta que Elizabeth procura como refúgio à tristeza. A torta que quase ninguém pede no café, mas que é feita porque há sempre a possibilidade de alguém querê-la.

Acabei demorando cinco anos para assistir ao filme, mas na última semana finalmente compartilhei o beijo de Jude Law e Norah Jones, daqueles cuja verdade vai para além da situação do beijo em si, e atestei novamente que a distância é tão mais ardilosa nas vezes em que mais aproxima do que afasta.

Norah Jones não canta, mas a doçura da voz e a sombra tímida de tristeza que carrega no timbre estão também nos olhos dela. Da cantora, as novas vieram de 2012 mesmo, com o álbum “…Little Broken Hearts”, que parece trilha sonora para uma viagem pra dentro alma ou por uma estrada com muito sol e umidade única pelas lágrimas que eventualmente corações molengos vão derrubar. “Travelin’ On” foi eleita a música que fica eternamente no replay quando termina o CD.

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Quem nunca?