“Eu vou dizer uma coisa agora que vocês depois se quiserem cortar… ou não. Você ouviu falar da obra dele, o ‘Catatau’? Naquele tempo, nós vivíamos o tempo do amor, rock ‘n’ roll e drogas. Ele pegou meio quilo de maconha, um quilo de maconha, foi ao pico do Marumbi, numa cabana, ficou cerca de um mês, quase dois meses lá, e daí nasceu o ‘Catatau’. Ele fez uma experiência de como seria você usar a maconha e escrever sob o efeito da droga, deu o ‘Catatau’. Difícil de ler, um encadeamento de palavras aparentemente sem sentido. Foi isso.”
Essa foi uma das histórias contadas por Antonio de Jesus, presidente da Academia Cascavelense de Letras, que foi aluno e amigo de Paulo Leminski. Jesus conta ainda como era o Leminski professor de cursinho, explica por que ele era um poeta multimídia e fala sobre um primeiro livro perdido de Leminski.
Entrevista publicada em de outubro de 2009, na edição 88 do Gazeta ALT.
***
Diagramação e arte: Jeferson Richetti
Edição: Anderson Antikieivcz Costa
[Ideograma]
Julliane Brita
Há muito que dizer de um poeta. Ainda mais se quem fala é um da mesma espécie. Para os que pensam que não há ligação entre Paulo Leminski e Cascavel, uma voz que por aqui muito se ouve diz o contrário. O presidente da ACL (Academia Cascavelense de Letras), Antonio de Jesus, foi aluno e amigo de Leminski. Aprendeu com ele as imposições de métricas e rimas, o rigor dos clássicos; e, depois, aprendeu a despojar-se delas. Soube que poesia era liberdade.
A cadeira ocupada por Jesus na Academia daqui tem o nome de Leminski, e as memórias também. O prefácio do primeiro livro publicado e o incentivo de se mostrar. Um poeta não é menos poeta quando não é visto, mas a linguagem sempre pede passagem. Um livro perdido de Leminski, a história da feitura de “Catatau” e a decepção dos não incautos. Leminski vive em muitas memórias.
ALT – Quem foi Paulo Leminski para você?
Jesus – Conheci Leminski no Cursinho Abreu, que na época era o cursinho preparatório para a universidade de direito, e ele era um professor que traduzia naquela época o que nós temos hoje, os chamados professores showmen. O Leminski tinha uma didática espetacular. Ele, olhando pra gente, desenhava no quadro que estava às costas a bota itálica para falar, por exemplo, de um período histórico que envolvia a Itália antiga ou a Idade Média; e ele correlacionava história com literatura, história e literatura com a ciência da época e explicava o porquê da poesia, da literatura de uma época, quais as influências que ela havia recebido da história e da ciência que se desenvolvia naquele momento. Então ele amarrava de tal maneira que o aluno não tinha como não se lembrar. Ele era extraordinário nesse ponto, porque, por exemplo, eu me recordo de uma das aulas de história em que ele falava sobre Inês de Castro, então ele falava do príncipe apaixonado que, ao sabê-la morta, entrava nu na igreja, desesperado, e ainda ele fazia piada: “Pois é, vocês já imaginaram o príncipe, o apaixonado pela Inês de Castro, pelado, entrando com as coisas balangando dentro de uma igreja, dentro de uma catedral?”. Todo mundo dava risada, mas aquilo, naquele instante, era gravado na cabeça da gente. E ele sabia fazer isso com uma maestria que só ele tinha. O Leminski falava acho que 14 idiomas, ele usava os ideogramas japoneses, chineses e tal, e ele tinha também outro lado. Ele nos ensinava o rigor da língua, ele nos ensinava aquilo que era, por exemplo, no haicai. A métrica, as regras, o haicai tradicional, que é radical, não admite que você faça diferente. Ele dizia até que no Japão os mestres do haicai passavam anos para fechar um haicai porque não tinham encontrado a palavra ou a rima certa. Aí depois que ele nos ensinava qual era a forma correta, ele dizia, “mas nós brasileiros somos incapazes de fazer um haicai como o japonês faz, porque ele faz em cima do ideograma, e são intraduzíveis para o português”. Por exemplo, o haicai de verão, o de inverno… e esse haicai, ele é mais zen, é observativo, e nós brasileiros não conseguimos escrever nada sem colocar a emoção, o haicai é frio, é zen. Aí ele dizia assim, então vocês façam do jeito que vocês sentirem. O Leminski nos ensinava o rigor técnico, mas depois dizia que o estro, a inspiração, ela não pode também ser aprisionada numa camisa de sete varas. Então a gente faz a poesia com a liberdade da inspiração que vem de dentro, cada um faz do seu jeito. Você pode não fazer um haicai, mas você vai fazer alguma coisa parecida, com gosto, com cheiro de haicai. São os quase haicais. E você faça como você puder agora, depois você bota na gaveta, guarda e à medida que vai avançando na técnica você vai refazendo aqueles rascunhos. A poesia, os haicais, eles são sempre obras em construção, vale todo o esforço, coloque sempre no papel.
ALT – Quanto tempo durou a convivência entre vocês e como aconteceu?
A. J. – Minha convivência com o Leminski foi duradoura. Começou no cursinho, ele nos acompanhava nos vestibulares, geralmente ele fazia o vestibular com a gente, tirava sempre dez, mas nunca fazia o curso. Nos anos subsequentes, nós nos tornamos amigos. Eu trabalhava numa editora, Editora Fonte, eu era o editor de uma revista chamada Cine TV. E ele tinha um livro na gaveta e a gente sempre cutucava “Mas que poeta que você é, você tem algum livro publicado?”. Um dia ele me trouxe um original e eu consegui que minha editora publicasse uma tiragem pequena, 300 livros. Eu não sei o nome do livro, porque o nome era um ideograma, nós fizemos uma primeira tiragem, esse livro eu não vejo na bibliografia dele, deve ter se perdido, mas nós tiramos 300 exemplares. E a gente sempre se encontrava via de regra ali nas proximidades da Boca Maldita, naqueles bares que tem ali, à tarde, na boca da noite, gostava de tomar chopinho ali. Várias vezes a gente ficou ali jogando conversa fora, e ele dizia que queria fazer coisas diferentes, que estava pensando em ir para a publicidade, e foi, que queria fazer jornal, e foi. Ele colocava pra gente e de repente você via ele estava fazendo aquilo. Então a nossa convivência foi longa, convivência de amigo. Eu vou dizer uma coisa agora que vocês depois se quiserem cortar… ou não. Você ouviu falar da obra dele, o “Catatau”? Naquele tempo, nós vivíamos o tempo do amor, rock n’ roll e drogas. Ele naquela época pegou meio quilo de maconha, um quilo de maconha, foi ao pico do Marumbi, numa cabana, ficou cerca de um mês, quase dois meses lá, e daí nasceu o “Catatau”. Ele fez uma experiência de como seria você usar a maconha e escrever sob o efeito da droga, deu o “Catatau”. Difícil de ler, um encadeamento de palavras aparentemente sem sentido. Foi isso. A gente conviveu uns dez anos. Um cara bacana, amigão assim.
ALT – O que influenciou na sua forma de escrever ter convivido com o Leminski?
A. J. – Pois é, eu tinha um senso bastante crítico, eu fazia e tinha vergonha de mostrar, eu aprendi com ele, inclusive, a métrica, a rima, essas coisas todas, que ele ensinava e dizia, “mas, olha, não necessariamente vocês são obrigados a fazer poesia dentro da métrica rígida e da rima, você pode fazer a poesia livre e tal”. Foi aí que eu descobri que podia fazer uma poesia mais livre. E foi quando eu escrevi esse primeiro livro meu, “Incoerências, pessimismos e incertezas”. Esse livro nasceu foi que eu comprei uma máquina de escrever nova, e eu tinha bastantes poemas nos livros do primeiro ano da faculdade, às vezes tinha umas aulas chatas e ficava rabiscando e fazendo poemas. Aí eu passei a limpo. Se você olhar esta capa de perto, vai ver que eu fiz a capa a partir de recortes dos jornais da época. Os Beatles estavam em pleno sucesso; em Minas Gerais, os policiais estavam baixando pau nos estudantes, em plena Ditadura; Roberto Carlos acabara de ganhar o prêmio de San Remo; a guerra do Vietnã estava em pleno de andamento; e esse rapaz e esse semáforo aqui significavam a minha própria indecisão sobre o rumo a seguir. Então passei a limpo e quem prefaciou esse livro pra mim? Foi o próprio Leminski, que era meu professor:
Poesia é um exercício
de humildade, do cotidiano
e da valorização das coisas “pequenas”, que
são as que contam.
Você sabe dizer do cotidiano,
nada espere, em poesia,
do que dela não seja.
Você já está na “3ª
margem do rio”.
E assina Leminski, de próprio punho. E por essas razões e mais outras, quando nós criamos a Academia Cascavelense de Letras e fomos escolher os patronos, eu indiquei o nome dele e reivindiquei ser o titular da cadeira para qual ele foi escolhido o patrono. O amigo, o mestre e o grande escritor paranaense de todos os tempos, que, hoje, começa a ser um ilustre desconhecido para as novas gerações que não conheceram o concretista, o professor, o jornalista, o publicitário, o compositor, que ele fez “n” letras de música e fez música com os grandes revolucionários da música popular brasileira. Então é por isso que as pessoas dizem que o Leminski foi um poeta multimídia, efetivamente ele atacou em todas as mídias, e em todas elas com raro brilhantismo.
ALT – Qual é a importância de a academia redescobrir a obra de Leminski?
A. J. – O Leminski unia as duas coisas: o conhecimento profundo dos meandros da língua portuguesa, não só da língua portuguesa, porque ele era versado na literatura mundial, e também brigava para que as pessoas soubessem em profundidade os meandros da língua portuguesa, o vernáculo português, mas também ele dizia que a criação pressupunha liberdade de experimentação, liberdade de fazer diferente, liberdade de você construir segundo a sua visão da realidade da literatura. Então ele unia o rigor científico com a liberdade de expressão. Nisso ele foi extraordinário, porque ele não exigia que seus alunos ficassem presos a uma camisa de força. E em outra coisa que o Leminski foi importante, que eu acho que hoje em dia é fundamental, é que hoje ninguém aprofunda mais nada, ninguém arrisca a ir além, o professor hoje, via de regra, é um mero anunciador de conteúdos; ele ia além do conteúdo, propunha que nós todos experimentássemos, não só conhecer as regras, a história da literatura, mas ele nos estimulava a tentar fazer literatura.
ALT – Com relação ao Leminski jornalista, você acredita que ele estaria contente com o jornalismo atual?
A. J. – Olha, ele era meio revoltado, até contra os próprios alunos dele. Eu lembro uma vez em que ele dizia pra mim que ele se sentia muito entristecido de ensinar, ajudar os filhinhos de papai a entrar na faculdade e depois se tornarem não agentes da boa prática profissional, mas meros mercantilistas. E ele se sentia até meio acabrunhado de ter servido de escada para pessoas que depois não iam servir a comunidade, a humanidade. Ele achava que o advogado tinha que ter um compromisso social, os médicos e as outras profissões idem. Então com certeza hoje ele não estaria feliz com o jornalismo que se faz, um jornalismo mais comprometido com as linhas editorias, dos donos do poder, do que com o público.